quinta-feira, 13 de outubro de 2016

UMA ESCOLA FEITA PARA QUE OS ALUNOS PENSEM

A Escola é, definitivamente, um ser vivo, portanto, sócio-histórico. Como ser produz outros seres*. Seres estes que vivem em permanente estado de interação e transformação. A Escola de hoje não é mais como a de antes. Tudo muda, é certo. A Escola de hoje anda um tanto quanto perdida; parece não ter rumo, talvez até mesmo sentido. Assim como antes precisamos pensar hoje a Escola que realmente desejamos: e pensar já é um bom começo para uma Escola feita para que os alunos pensem.

*É possível mais bem compreender o conceito de "ser" como tudo aquilo que possui uma natureza que se basta em si mesma.

Como sugestão, neste primeiro texto, poderíamos refletir um pouco sobre a necessidade de formarmos mais e mais pensadores:

O AUTORITARISMO NA EDUCAÇÃO: POR QUE NÃO FORMAMOS MAIS PENSADORES?

“A educação é um ato político, mas antes disso é um ato de amor”, disse Paulo Freire. E bem o disse! Colocação apropriada pra essa nossa escola que, há muito tempo e ainda hoje, continua sendo um lugar de más políticas e vazio de amor.

No desbaratino das informações, no desobjetivo da instituição escolar, perdeu-se a linha de raciocínio: para que serve a escola? O que formamos nas escolas? O que queremos dela? E dos alunos?

Encontramos nas (lotadas) salas de aulas, públicas e privadas, um contingente de alunos e alunas desinteressados, desnorteados e desmotivados. Não sabem por que estão ali (ou sabem: é porque os pais obrigam!) e não querem estar ali. Em contraposição à rua, ao lazer ou a qualquer outro projeto pedagógico/cultural (a aula de dança, de canto, o esporte, etc), a escola é algo negativo na vida do aluno. É uma referência ruim – com exceção dos amigos! São eles a melhor parte da escola! Ou seja, o melhor momento dentro da instituição é o recreio: é estar fora da sala de aula. Não há prazer em estudar.

Não é pra menos. Maria Montessori, em seu livro Pedagogia Científica, fala do esforço dos cientistas (antropólogos, médicos, higienistas) em preparar a escola para a criança: pensaram nos bancos, por exemplo: fixos, para que não se movessem, com a altura certa para que as crianças não desenvolvessem escoliose (!), com abas laterais, para que o aluno não pudesse sair de um lado ou outro. O banco é a melhor representação da escola: pensado para manter o aluno imóvel e para prevenir até problemas de saúde que possam ser causados pela própria imposição rígida. Completamente artificial e estranho ao aluno e sua condição natural enquanto ser humano.

No espaço escolar, imobilidade e silêncio são boas características. Obrigatórias e essenciais para a transmissão do conhecimento. O professor, detentor de todo o saber, é quem vai transmitir tudo que o aluno precisa saber – desconsidera, ele, pois, que o aluno não é uma página em branco e tem experiências trazidas de sua vivência? A escola não é um espaço de debate: a conversa é punível! “Silêncio!”, pedem os professores. O movimento é punível! “Vai sentar no seu lugar”, ordenam os professores. O autoritarismo está em tudo, inclusive e principalmente na falta de liberdade de movimento e de expressão. Tudo que se preza é a hierarquia autoritária do professor e do próprio espaço e o bom comportamento (que se traduz em silêncio e imobilidade) por parte do aluno.

Há alguns dias, durante uma aula na UFMT, a professora (estarrecida por não ser a primeira vez que falava disso) chamou a atenção da turma: “vocês estão explicando e traduzindo o trecho que retiraram do texto, mas eu pedi que refletissem sobre, não que explicassem o que já está lá no próprio texto”. Um colega se desculpou: “desculpe, professora, mas eu vim, e creio que a maioria dos meus colegas aqui também vieram, de um ensino médio em que não devia pensar, devia copiar e resumir os textos dados pelo professor; não fomos ensinados ou estimulados a pensar, aí chego aqui e não sei fazer isso que você pede”. A cultura da memorização e não da produção. É essa a falta de diálogo entre o ensino básico e o ensino superior que tratei em conjunto com meu amigo Sheltom de Aragão no texto “Enem e ensino básico: a educação em crise”.

É essa, talvez, também a escola que Sir Ken Robinson diz que mata a criatividade. Essa escola deseja a criatividade? Ou deseja a repetição de padrões pré-estabelecidos impostos? Montessori, após anos de estudos e observação da criança, diz que o movimento é condição essencial para a vivência desse pequeno ser em construção. Diz mais: que o caminho do intelecto passa pelas mãos. A construção do saber se dá nos cinco sentidos e não apenas no campo das ideias, a decoreba de textos e o armazenamento que é tido como conhecimento intelectual. Pode a escola limitar o saber à teoria e exigir dos alunos que se mantenham interessados, producentes e apaixonados pelos estudos quando limitam que se movimentem, questionem, reflitam e que estejam em contato direto com seu objeto de estudo?

Sentados e quietos, desde a mais tenra idade, riscamos por cima dos traços, pintamos dentro das bordas, preenchemos os padrões, cortamos em cima da linha… Fazemos tudo conforme o que foi pré-estabelecido, conforme o padrão. Não criamos: seguimos ordens. Como diz Paulo Freire, a escola é livresca e verborrágica.

Se voltarmos uns milênios atrás, na desenvolvida cidade de Atenas, as escolas gregas (scholé) eram espaços abertos em que se estimulavam os debates, defesa de teses, contraposição de discursos, enfim, a retórica e a oratória eram cruciais. As escolas formavam pensadores, formavam filósofos – aqueles que amam o conhecimento, na tradução literária do termo. Para aquele tempo, a retórica era importantíssima tanto para os que quisessem seguir carreira política quanto para os que precisavam, simplesmente, fazer valer seus interesses nas assembleias ou se defender das acusações jurídicas. Falar bem, pensar, argumentar e debater eram pontos muito valorizados na sociedade grega. E a escola de hoje o que precisa formar? O que lhe é programado formar?

O que se perdeu no desenvolver da escola? Talvez com a revolução industrial, a necessidade de mão de obra especializada alimentando os mercados da burguesia, a necessidade de técnicos, tudo isso tenha transmutado a escola de um espaço de pensadores para uma fábrica de trabalhadores? Sobre isso, tratei no artigo “A escola pública é ruim de propósito?”, postado aqui no blog.

A escola é uma gaiola que corta as asas dos alunos e os domestica. E não se engane quem pensa que isto é condição única e exclusiva da escola pública, pois se trata de um modelo adotado e imposto que é seguido também pelas escolas privadas, embora comumente se crie a dicotomia escola pública ruim vs escola privada boa – dicotomia esta que, aliás, serve confortavelmente ao mercado privado. Transformar a educação em mercadoria é uma das coisas mais funestas que concebemos na sociedade, no mesmo patamar, provavelmente, só está a privatização da saúde e, consequentemente, a mercantilização da vida.

Paulo Freire e Maria Montessori têm trajetos pedagógicos bem distintos, mas suas pedagogias andam lado a lado quando se trata de autonomia: eles sabem que foi negada, até aqui, a autonomia ao aluno. A autonomia para estudar, pensar, dialogar, construir, pesquisar, descobrir, ser. E os dois pedagogos trazem propostas que devolvem essa autonomia aos aprendizes, criando métodos e ferramentas que auxiliam no processo de aprendizagem. Para Montessori, o professor é um observador da criança e só deve interferir quando necessário ou quando requisitado. Ele não é a figura central da cena, este é o aluno! Para Paulo Freire e sua Pedagogia da Autonomia, educar não se trata de um ato de transmissão de conhecimentos, mas sim criação de oportunidades para a construção dos saberes. Dois revolucionários exaltados na teoria e ignorados na prática.

Essa escola autoritária que não permite ao aluno se desenvolver e construir sadiamente seus saberes é a mesma escola carente de democracia. Para muitos pode parecer estranho o conceito de democracia na escola, porque não estamos acostumados a ver. Todavia, isso está intrinsecamente ligado à amortização da criatividade. É essa mesma escola autoritária que não permite a criação de grêmios, é a escola que proíbe qualquer ato político por parte dos alunos – como um simples abaixo-assinado –, é a escola que não elege Conselho, que dá suspensões e expulsões compulsoriamente sem justificativa apresentada aos pais, que não sabe lidar com indisciplinas na sala de aula, que esconde o seu regimento, que não elabora as regras junto dos alunos e uma infinidade de outras práticas muito comuns nas escolas brasileiras que dariam uma lista extensa demais para se colocar aqui. No blog EducaForum, são incontáveis os relatos de alunos, responsáveis de alunos e professores que denunciam o autoritarismo dentro do ambiente escolar e que provam, paulatinamente, que a escola não sabe lidar com alunos críticos, inteligentes, questionadores.

Retirando um trecho do artigo “Escola olhando para a pobreza”, do blog citado:

Pedir às classes formadoras de opinião, cujos filhos estudam na rede particular, que se preocupem com a inclusão e a educação dos filhos “dos outros”, é demais… E essa omissão provocou outro fenômeno muito interessante: de “terra de ninguém”, a escola pública virou propriedade da pior classe “docente”, que através da assessoria de imprensa de seus sindicatos convenceu a sociedade de que o fracasso da escola é culpa do aluno e de sua família. Isso mesmo! Aluno pobre, família sem cultura e desestruturada = fracasso escolar. De modo geral, a escola espera que o aluno fracasse e é disso que falamos sempre aqui. Os verdadeiros educadores são a minoria e se calam, esmagados pela arrogância e truculência dos demais.

Também já foi falado, em artigos anteriores aqui do blog, sobre a politicagem exercida sobre a educação enquanto números. Ou seja, a educação usada para propaganda política. Despreza-se a qualidade, o importante é a quantidade para ser usada como fator positivo que se apresenta pra população na “prestação de contas”. Assim, a Escola vai deixando seu viés idealista e pedagógico de lado (pecado!) e se institucionalizando de tal forma que sua única função é a escolarização, a certificação, não a formação em si, a qualidade, o cidadão que formou, o pensador que devolveu à sociedade. Sobre isso, um trecho muito lúcido de outro blog, o Desmascarando a Escola Pública:

Sim, a cada inscrição em concurso, em vestibular, lá está a cópia do histórico de segundo grau. Hoje, é exatamente isso que as autoridades querem. Escolarização. O certificado que se guarda na gaveta. As pedagogas olham a nota e, por ela, formam sua opinião sobre o sucesso do aluno e do professor. As notas vermelhas passam de quatro? Se forem, o professor está errado. O diretor atenta para um número: reprovados. Não saberia sequer dizer qual o resultado das turmas nos exames oficiais, que competências a escola está desenvolvendo, onde estão as falhas, nem elaborar um projeto. Mas o certificado é como o rótulo posto no produto no final da esteira de produção. Só que produto pode ser rejeitado lá fora, e a indústria ser fechada; a escola, ao contrário, acredita que cumpriu sua função ao escolarizar; se não houve aprendizagem, não é algo que a preocupe. Aluno só existe na escola; a vida como membro da sociedade não interessa a ela. Isso tudo não muda. Existia nos anos 80. E hoje aquele tempo é visto como modelar pelas pessoas que atuam na educação. As provas são as mesmas, com as mesmas exigências. Não há construção de conhecimentos ou avaliações autênticas. Todos os parâmetros e propostas curriculares passaram incólumes pela escola. Só o aluno mudou: ele diz que não vai fazer nada do que for pedido. E a escola precisa, a todo custo, escolarizá-lo, mesmo sem uma atividade que corresponda a uma avaliação real. Problemas maiores começam aí: a corrupção hoje está longe de estar na cola. Está profissionalizada. Quesito em que a educação nacional humilharia o resto do mundo nos testes internacionais.

É difícil apontar uma solução para o problema da escola e educação pública, entretanto. Isto porque parece não haver a devida preocupação com o estado atual, como se estivesse num estágio satisfatório: serve bem para formação de mão-de-obra e serve bem ao cenário político. Existem escolas democráticas, existem pedagogias diferentes, existem escolas que se preocupam com uma formação diferente do ensino proposto (verborrágico, livresco, memorizador): mas elas não estão “disponíveis” ao público, não são moldes incentivados, adotados, promovidos, acolhidos pelo Estado. São da iniciativa privada. Só tem uma educação diferenciada quem puder pagar por isso, quem puder arcar com o preço. A escola mais idealista que utiliza uma linha pedagógica que foge à tradicional é também uma bolha social, é elitista. São exemplos, no Brasil e no mundo, as escolas Montessori, as escolas Waldorf, a escola Summerhill, a Escola da Ponte (uma exceção, pois integra o sistema público de ensino há algum tempo recente), entre outras tão ilustres quanto.

Portanto, um novo panorama é possível e as críticas, ferramentas e contribuições pedagógicas estão aí, extremamente acessíveis. Bastam interesse e investimento do Poder Público e uma população consciente da importância dessa renovação no modelo escolar. Sigamos o exemplo da Holanda, que utiliza o método Montessori nas escolas públicas. Ou, melhor, da Finlândia, que – embora independente há apenas 90 anos – ocupa sucessivamente o primeiro lugar do PISA (o Brasil está em 52º de 56 países). O país conta com 98% dos jovens na rede pública de ensino, baseia sua educação na autonomia e liberdade, alimentação e material escolar são gratuitos, 100% subsidiados pelo governo, valorização e qualificação do professor – e isso reflete na qualidade de ensino, pois as escolas têm autonomia em compor o currículo e os professores têm liberdade metodológica para colocá-lo em prática (o ministério de educação finlandês não inspeciona desde 1990).

Texto publicado no Jornal GGN.


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