A Escola é, definitivamente, um ser vivo, portanto,
sócio-histórico. Como ser produz outros seres*. Seres estes que vivem em
permanente estado de interação e transformação. A Escola de hoje não é mais
como a de antes. Tudo muda, é certo. A Escola de hoje anda um tanto quanto
perdida; parece não ter rumo, talvez até mesmo sentido. Assim como antes
precisamos pensar hoje a Escola que realmente desejamos: e pensar já é um bom
começo para uma Escola feita para que os alunos pensem.
*É possível mais bem compreender o conceito de "ser" como tudo aquilo que possui uma natureza que se basta em si mesma.
Como sugestão, neste primeiro texto, poderíamos refletir um
pouco sobre a necessidade de formarmos mais e mais pensadores:
O AUTORITARISMO NA EDUCAÇÃO: POR QUE NÃO FORMAMOS
MAIS PENSADORES?
“A educação é um ato político, mas antes disso é um
ato de amor”, disse Paulo Freire. E bem o disse! Colocação apropriada pra essa
nossa escola que, há muito tempo e ainda hoje, continua sendo um lugar de más
políticas e vazio de amor.
No desbaratino das informações, no desobjetivo da
instituição escolar, perdeu-se a linha de raciocínio: para que serve a escola?
O que formamos nas escolas? O que queremos dela? E dos alunos?
Encontramos nas (lotadas) salas de aulas, públicas e
privadas, um contingente de alunos e alunas desinteressados, desnorteados e
desmotivados. Não sabem por que estão ali (ou sabem: é porque os pais obrigam!)
e não querem estar ali. Em contraposição à rua, ao lazer ou a qualquer outro
projeto pedagógico/cultural (a aula de dança, de canto, o esporte, etc), a
escola é algo negativo na vida do aluno. É uma referência ruim – com exceção
dos amigos! São eles a melhor parte da escola! Ou seja, o melhor momento dentro
da instituição é o recreio: é estar fora da sala de aula. Não há prazer em
estudar.
Não é pra menos. Maria Montessori, em seu livro
Pedagogia Científica, fala do esforço dos cientistas (antropólogos, médicos,
higienistas) em preparar a escola para a criança: pensaram nos bancos, por
exemplo: fixos, para que não se movessem, com a altura certa para que as
crianças não desenvolvessem escoliose (!), com abas laterais, para que o aluno
não pudesse sair de um lado ou outro. O banco é a melhor representação da
escola: pensado para manter o aluno imóvel e para prevenir até problemas de
saúde que possam ser causados pela própria imposição rígida. Completamente
artificial e estranho ao aluno e sua condição natural enquanto ser humano.
No espaço escolar, imobilidade e silêncio são boas
características. Obrigatórias e essenciais para a transmissão do conhecimento.
O professor, detentor de todo o saber, é quem vai transmitir tudo que o aluno
precisa saber – desconsidera, ele, pois, que o aluno não é uma página em branco
e tem experiências trazidas de sua vivência? A escola não é um espaço de
debate: a conversa é punível! “Silêncio!”, pedem os professores. O movimento é
punível! “Vai sentar no seu lugar”, ordenam os professores. O autoritarismo
está em tudo, inclusive e principalmente na falta de liberdade de movimento e de
expressão. Tudo que se preza é a hierarquia autoritária do professor e do
próprio espaço e o bom comportamento (que se traduz em silêncio e imobilidade)
por parte do aluno.
Há alguns dias, durante uma aula na UFMT, a
professora (estarrecida por não ser a primeira vez que falava disso) chamou a
atenção da turma: “vocês estão explicando e traduzindo o trecho que retiraram
do texto, mas eu pedi que refletissem sobre, não que explicassem o que já está
lá no próprio texto”. Um colega se desculpou: “desculpe, professora, mas eu
vim, e creio que a maioria dos meus colegas aqui também vieram, de um ensino
médio em que não devia pensar, devia copiar e resumir os textos dados pelo
professor; não fomos ensinados ou estimulados a pensar, aí chego aqui e não sei
fazer isso que você pede”. A cultura da memorização e não da produção. É essa a
falta de diálogo entre o ensino básico e o ensino superior que tratei em
conjunto com meu amigo Sheltom de Aragão no texto “Enem e ensino básico: a
educação em crise”.
É essa, talvez, também a escola que Sir Ken Robinson
diz que mata a criatividade. Essa escola deseja a criatividade? Ou deseja a
repetição de padrões pré-estabelecidos impostos? Montessori, após anos de
estudos e observação da criança, diz que o movimento é condição essencial para
a vivência desse pequeno ser em construção. Diz mais: que o caminho do
intelecto passa pelas mãos. A construção do saber se dá nos cinco sentidos e
não apenas no campo das ideias, a decoreba de textos e o armazenamento que é
tido como conhecimento intelectual. Pode a escola limitar o saber à teoria e
exigir dos alunos que se mantenham interessados, producentes e apaixonados
pelos estudos quando limitam que se movimentem, questionem, reflitam e que
estejam em contato direto com seu objeto de estudo?
Sentados e quietos, desde a mais tenra idade,
riscamos por cima dos traços, pintamos dentro das bordas, preenchemos os
padrões, cortamos em cima da linha… Fazemos tudo conforme o que foi
pré-estabelecido, conforme o padrão. Não criamos: seguimos ordens. Como diz
Paulo Freire, a escola é livresca e verborrágica.
Se voltarmos uns milênios atrás, na desenvolvida
cidade de Atenas, as escolas gregas (scholé) eram espaços abertos em que se
estimulavam os debates, defesa de teses, contraposição de discursos, enfim, a
retórica e a oratória eram cruciais. As escolas formavam pensadores, formavam
filósofos – aqueles que amam o conhecimento, na tradução literária do termo.
Para aquele tempo, a retórica era importantíssima tanto para os que quisessem
seguir carreira política quanto para os que precisavam, simplesmente, fazer
valer seus interesses nas assembleias ou se defender das acusações jurídicas.
Falar bem, pensar, argumentar e debater eram pontos muito valorizados na
sociedade grega. E a escola de hoje o que precisa formar? O que lhe é
programado formar?
O que se perdeu no desenvolver da escola? Talvez com
a revolução industrial, a necessidade de mão de obra especializada alimentando
os mercados da burguesia, a necessidade de técnicos, tudo isso tenha
transmutado a escola de um espaço de pensadores para uma fábrica de
trabalhadores? Sobre isso, tratei no artigo “A escola pública é ruim de
propósito?”, postado aqui no blog.
A escola é uma gaiola que corta as asas dos alunos e
os domestica. E não se engane quem pensa que isto é condição única e exclusiva
da escola pública, pois se trata de um modelo adotado e imposto que é seguido
também pelas escolas privadas, embora comumente se crie a dicotomia escola
pública ruim vs escola privada boa – dicotomia esta que, aliás, serve
confortavelmente ao mercado privado. Transformar a educação em mercadoria é uma
das coisas mais funestas que concebemos na sociedade, no mesmo patamar,
provavelmente, só está a privatização da saúde e, consequentemente, a
mercantilização da vida.
Paulo Freire e Maria Montessori têm trajetos
pedagógicos bem distintos, mas suas pedagogias andam lado a lado quando se
trata de autonomia: eles sabem que foi negada, até aqui, a autonomia ao aluno.
A autonomia para estudar, pensar, dialogar, construir, pesquisar, descobrir,
ser. E os dois pedagogos trazem propostas que devolvem essa autonomia aos
aprendizes, criando métodos e ferramentas que auxiliam no processo de
aprendizagem. Para Montessori, o professor é um observador da criança e só deve
interferir quando necessário ou quando requisitado. Ele não é a figura central
da cena, este é o aluno! Para Paulo Freire e sua Pedagogia da Autonomia, educar
não se trata de um ato de transmissão de conhecimentos, mas sim criação de
oportunidades para a construção dos saberes. Dois revolucionários exaltados na
teoria e ignorados na prática.
Essa escola autoritária que não permite ao aluno se
desenvolver e construir sadiamente seus saberes é a mesma escola carente de
democracia. Para muitos pode parecer estranho o conceito de democracia na
escola, porque não estamos acostumados a ver. Todavia, isso está
intrinsecamente ligado à amortização da criatividade. É essa mesma escola
autoritária que não permite a criação de grêmios, é a escola que proíbe
qualquer ato político por parte dos alunos – como um simples abaixo-assinado –,
é a escola que não elege Conselho, que dá suspensões e expulsões
compulsoriamente sem justificativa apresentada aos pais, que não sabe lidar com
indisciplinas na sala de aula, que esconde o seu regimento, que não elabora as
regras junto dos alunos e uma infinidade de outras práticas muito comuns nas
escolas brasileiras que dariam uma lista extensa demais para se colocar aqui.
No blog EducaForum, são incontáveis os relatos de alunos, responsáveis de
alunos e professores que denunciam o autoritarismo dentro do ambiente escolar e
que provam, paulatinamente, que a escola não sabe lidar com alunos críticos,
inteligentes, questionadores.
Retirando um trecho do artigo “Escola olhando para a
pobreza”, do blog citado:
Pedir às classes formadoras de opinião, cujos filhos
estudam na rede particular, que se preocupem com a inclusão e a educação dos
filhos “dos outros”, é demais… E essa omissão provocou outro fenômeno muito interessante:
de “terra de ninguém”, a escola pública virou propriedade da pior classe
“docente”, que através da assessoria de imprensa de seus sindicatos convenceu a
sociedade de que o fracasso da escola é culpa do aluno e de sua família. Isso
mesmo! Aluno pobre, família sem cultura e desestruturada = fracasso escolar. De
modo geral, a escola espera que o aluno fracasse e é disso que falamos sempre
aqui. Os verdadeiros educadores são a minoria e se calam, esmagados pela
arrogância e truculência dos demais.
Também já foi falado, em artigos anteriores aqui do
blog, sobre a politicagem exercida sobre a educação enquanto números. Ou seja,
a educação usada para propaganda política. Despreza-se a qualidade, o
importante é a quantidade para ser usada como fator positivo que se apresenta
pra população na “prestação de contas”. Assim, a Escola vai deixando seu viés
idealista e pedagógico de lado (pecado!) e se institucionalizando de tal forma
que sua única função é a escolarização, a certificação, não a formação em si, a
qualidade, o cidadão que formou, o pensador que devolveu à sociedade. Sobre
isso, um trecho muito lúcido de outro blog, o Desmascarando a Escola Pública:
Sim, a cada inscrição em concurso, em vestibular, lá
está a cópia do histórico de segundo grau. Hoje, é exatamente isso que as
autoridades querem. Escolarização. O certificado que se guarda na gaveta. As
pedagogas olham a nota e, por ela, formam sua opinião sobre o sucesso do aluno
e do professor. As notas vermelhas passam de quatro? Se forem, o professor está
errado. O diretor atenta para um número: reprovados. Não saberia sequer dizer
qual o resultado das turmas nos exames oficiais, que competências a escola está
desenvolvendo, onde estão as falhas, nem elaborar um projeto. Mas o certificado
é como o rótulo posto no produto no final da esteira de produção. Só que
produto pode ser rejeitado lá fora, e a indústria ser fechada; a escola, ao
contrário, acredita que cumpriu sua função ao escolarizar; se não houve
aprendizagem, não é algo que a preocupe. Aluno só existe na escola; a vida como
membro da sociedade não interessa a ela. Isso tudo não muda. Existia nos anos
80. E hoje aquele tempo é visto como modelar pelas pessoas que atuam na
educação. As provas são as mesmas, com as mesmas exigências. Não há construção
de conhecimentos ou avaliações autênticas. Todos os parâmetros e propostas
curriculares passaram incólumes pela escola. Só o aluno mudou: ele diz que não
vai fazer nada do que for pedido. E a escola precisa, a todo custo,
escolarizá-lo, mesmo sem uma atividade que corresponda a uma avaliação real.
Problemas maiores começam aí: a corrupção hoje está longe de estar na cola.
Está profissionalizada. Quesito em que a educação nacional humilharia o resto
do mundo nos testes internacionais.
É difícil apontar uma solução para o problema da
escola e educação pública, entretanto. Isto porque parece não haver a devida
preocupação com o estado atual, como se estivesse num estágio satisfatório:
serve bem para formação de mão-de-obra e serve bem ao cenário político. Existem
escolas democráticas, existem pedagogias diferentes, existem escolas que se
preocupam com uma formação diferente do ensino proposto (verborrágico,
livresco, memorizador): mas elas não estão “disponíveis” ao público, não são
moldes incentivados, adotados, promovidos, acolhidos pelo Estado. São da
iniciativa privada. Só tem uma educação diferenciada quem puder pagar por isso,
quem puder arcar com o preço. A escola mais idealista que utiliza uma linha
pedagógica que foge à tradicional é também uma bolha social, é elitista. São
exemplos, no Brasil e no mundo, as escolas Montessori, as escolas Waldorf, a
escola Summerhill, a Escola da Ponte (uma exceção, pois integra o sistema
público de ensino há algum tempo recente), entre outras tão ilustres quanto.
Portanto, um novo panorama é possível e as críticas,
ferramentas e contribuições pedagógicas estão aí, extremamente acessíveis.
Bastam interesse e investimento do Poder Público e uma população consciente da
importância dessa renovação no modelo escolar. Sigamos o exemplo da Holanda,
que utiliza o método Montessori nas escolas públicas. Ou, melhor, da Finlândia,
que – embora independente há apenas 90 anos – ocupa sucessivamente o primeiro
lugar do PISA (o Brasil está em 52º de 56 países). O país conta com 98% dos
jovens na rede pública de ensino, baseia sua educação na autonomia e liberdade,
alimentação e material escolar são gratuitos, 100% subsidiados pelo governo,
valorização e qualificação do professor – e isso reflete na qualidade de
ensino, pois as escolas têm autonomia em compor o currículo e os professores
têm liberdade metodológica para colocá-lo em prática (o ministério de educação
finlandês não inspeciona desde 1990).
Texto publicado no Jornal GGN.